No Brasil, a irregularidade fundiária é um produto da urbanização intensa vivida pelo país, que deixou para os mais pobres os piores lugares da cidade
Por Karla Moroso, do CDES Direitos Humanos, para o Fórum Nacional de Reforma Urbana | Publicado em 18/05/2016
A política de habitação brasileira divide o quadro das necessidades em dois grupos: o de déficit e o de inadequação habitacionais. O primeiro trata da falta de moradia tendo como seu objetivo a produção de novas unidades para atender um passivo que é formado por moradias precárias, famílias com ônus excessivo com aluguel e a coabitação. O segundo engloba as moradias que apresentam inadequação fundiária, a falta de algum item de infraestrutura básica, que são adensadas ou necessitam de melhoria ou complementação física – por exemplo, banheiro –, tendo como seu objetivo a qualificação da moradia.
O primeiro demanda produção de terra urbanizada, tornando-a um importante vetor de crescimento urbano e exigindo um diálogo direto com o planejamento urbano, tendo em vista o desafio posto de expandir a cidade. Essa expansão precisa ser planejada, regulada, projetada. O segundo demanda a qualificação urbana e habitacional daquilo que, via de regra, foi produto da autoconstrução informal das populações mais carentes ao longo dos anos, alheio às regras e sem orientação técnica e que, hoje, materializam as favelas e assentamentos informais do país.
A regularização fundiária é uma das ações previstas pela política habitacional do Brasil, que oferece instrumentos legais e urbanísticos (formas de fazer a regularização) que visam retirar da informalidade as camadas mais pobres da população.
No Brasil, a irregularidade fundiária é um produto da urbanização intensa vivida pelo país, que deixou para os mais pobres os piores lugares da cidade; ocasionado o processo de favelização e periferização presentes até a atualidade. Ela não pode ser vista de forma fragmentada, como uma demanda de reassentamento (que demanda produção de moradias em escala) ou de qualificação urbana do tipo “remendos”, por um viés estritamente urbano ou jurídico.
É a articulação entre esses dois aspectos que garante o direito à moradia, além de resgatar a dignidade e a autoestima dos assentamentos informais, como defendem variados especialistas da área.
Um exemplo é o das ações visando a regularização fundiária no estado do Rio Grande do Sul, que têm origem na Lei Complementar nº. 9.752 de novembro de 1992, que autoriza o Executivo a doar áreas urbanas de domínio do estado, ocupadas por populações de baixa renda. Com a criação da Secretaria de Habitação (SEHAB), em 1999, se institucionaliza o Programa de Regularização Fundiária e Reassentamento do estado. Neste primeiro período, o programa prioriza as áreas da capital elencadas por esse decreto e atua na parceria com os municípios em algumas áreas do interior.
Assim, no ano de 2002, são realizados os levantamentos topográficos e cadastrais das 14 áreas do estado definidas no decreto: Aparício Borges, Baroneza do Gravataí, Bororó, Clareu, Ecológica, Gaúcha, Jardim São João, Juliano Moreira, João Pessoa, IPE/São Borja, Morada do Sol , Nova Esperança, Salvador França, Santa Clara, São Judas Tadeu, São Miguel, São Pedro e Soldado João. Destas áreas, houve a urbanização parcial da Vila São Pedro (30% das famílias) e não houve a titulação de nenhuma das áreas.
Há mais de dez anos o Rio Grande do Sul não desenvolve ações efetivas para a regularização fundiária. A falta de segurança na posse das famílias que demandam por regularização fundiária no estado gaúcho leva a uma cadeia de violações aos direitos humanos, na qual se sobressai o direito à moradia digna, o direito à saúde, o direito à educação e outros. Na verdade, essas comunidades demandam por direito à cidade a partir do reconhecimento formal da sua posse.
Questões como a posse coletiva, a participação efetiva e o protagonismo comunitário não podem ser deixados à margem do processo de regularização fundiária, pois são elementos fundamentais para a sustentabilidade do processo no tempo (permanência das famílias na área regularizada) e no espaço (território).
Num contexto de supervalorização imobiliária, em que um dos desafios está no acesso dos menos favorecidos à terra urbanizada, o reconhecimento da posse coletiva através da CUEM é um grande avanço e deve se estender aos projetos de urbanização dos assentamentos informais.
A regularização fundiária pela propriedade individual inserido no atual modelo de desenvolvimento não garante o direito à moradia e a inserção socioeconômica das famílias à cidade, servindo apenas aos interesses do mercado. A moradia é um direito a ser garantido pelo Estado brasileiro, não é mercadoria, e a regularização fundiária pode ser um caminho para a sua realização.