Débora Fogliatto
Casas humildes de madeira, cachorros, crianças brincando em ruas de chão batido, árvores, e principalmente o azul do céu e da água são algumas das imagens reunidas na exposição “Minha Ilha Fotografo Eu”, que conta com fotografias de moradores da Ilha Grande dos Marinheiros. Devido à construção da ponte do Guaíba, que já está em andamento, cerca de mil famílias terão que deixar suas casas, mas as informações sobre isso nunca ficaram completamente claras para eles: teoricamente, os moradores serão reassentadas, mas ainda não foram construídas as casas para onde devem ir.
Diante desse cenário, o Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES), entidade que trabalha com questões de moradia e direitos humanos, iniciou o projeto fotográfico, que culminou na exposição e na publicação de um livro, lançados nesta segunda-feira (17) na Câmara Municipal. Por meio de uma campanha nas redes sociais, o CDES conseguiu 13 câmeras fotográficas digitais de doadores que se solidarizaram com o projeto, dando início ao trabalho com os moradores, desenvolvido pelo fotógrafo Igor Sperotto. As fotografias foram tiradas entre maio e julho de 2016.
A comunidade, que fica na região com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Porto Alegre, vive principalmente de reciclagem e pesca. Os moradores, porém, não se consideram pobres. A recicladora Cristiane da Cruz Rodrigues, de 35 anos, afirma que se interessou em fazer os registros exatamente para romper esse estigma que existe de que os moradores são miseráveis. “Existe um vídeo que está espalhado que diz que nós moradores da ilha comíamos restos de animais. E isso ficou muito chato, e eu queria provar que não existe isso aqui dentro. Falaram pra tirar fotos que passavam emoção, e eu moro num lugar bonito, tudo que tá no livro foi tirado aqui dentro da ilha”, explica.
Nos textos que acompanham as fotos, a estudante de jornalismo Jeânnifer Stephanie, moradora da Ilha, também menciona que as pessoas que vão de fora fotografar o local, captam somente “uma população carente que não tem oportunidades. Não enxergam o povo forte, aguerrido e bravo, que não tem medo de pegar no pesado e partir pra luta”. Ela considera que a importância do projeto é justamente trazer aos moradores a oportunidade de “mostrar para os outros sua realidade, seu olhar de uma ilha bela e cheia de vida. Mostrar que temos o privilégio de acordar ouvindo o canto dos pássaros e a risada das crianças que jogam ‘bolita’ na rua”.
Ao mesmo tempo, a obra da ponte, que passa pelos fundos da casa de Cristiane, também preocupa e é tema constante das fotos, embora ela mencione que faz algum tempo que está “tudo parado”. “Com certeza, não queremos sair, mas já que tem que sair, eles que façam a casa primeiro pra depois remover a gente daqui”, afirma. Andréia Santiago da Cruz, no livro, relata que tem um pátio grande em sua casa e não quer sair para ir para um lugar menor. “Eu não quero sair e me recuso a largar minha vida, o lugar que eu nasci, me criei e pretendo criar meus netos. Eu tirei essa foto na verdade para mostrar o tamanho do meu pátio, que é enorme e que eu não quero ir para um lugar pequeno, quero que tenha pelo menos o conforto que eu tenho na minha casa hoje”, diz.
Algumas das fotos mais impressionantes foram tiradas pelo estudante Kauê, que aos 12 anos retratou diversas paisagens da Ilha: árvores, um barco no Guaíba, um grafiti numa parede, o céu com um avião voando e caminhões passando por cima da ponte já existente. De maneira simples, ele explica cada imagem: “eu gostei dos caminhões que estavam passando e tirei foto porque era muito bonita a imagem”, “um barco. Quando eu vi tava tudo claro e o barco escuro. Daí eu tirei foto”, relata.
O CDES entrou em contato com a comunidade, primeiramente, a partir do acompanhamento de algumas reuniões entre os moradores e a Defensoria Pública, relacionadas à construção da ponte. A partir daí, os integrantes do grupo perceberam que os moradores queriam ter voz, e o jornalista Igor Sperotto, que trabalha na Comunicação Social do Centro, foi quem tomou a iniciativa de criar o projeto. “A maioria das vezes são pessoas de fora que fotografam a Ilha, o olhar é depreciativo sobre eles. E aí surgiu a ideia de tentar fazer com que eles mostrem como é essa vida, porque gostam tanto de morar lá”, explica o idealizador.
Depois dessa reunião, o CDES procurou algumas lideranças da comunidade e debateram a questão, percebendo que havia interesse na realização do trabalho. Então, foram marcadas as reuniões e as oficinas para tirar as fotos, após a arrecadação de câmeras feita pelo Facebook. “O grupo foi se modificando, alguns pararam de vir, surgiram outros. Nos primeiros encontros, metade das pessoas desistiram, e depois a mesma quantidade de pessoas entrou”, conta Igor. Ele lembra que, inicialmente, havia uma desconfiança por parte da população, que muitas vezes recebe pesquisadores ou jornalistas e sente que não “ficam” com nada em troca. “Começaram a se empolgar mais quando viram que estava ganhando corpo e realmente poderia ficar alguma coisa, nem que seja porque as fotos registram a memória do lugar. Há um sentimento de que a identidade do local vai se perder, então o livro fica também como documento de memória”, reflete.
O lançamento da exposição e do livro ocorreu na última segunda-feira (17), situação em que Igor conta que o CDES foi procurado por outras duas comunidades que estão interessadas em realizar o projeto também. Ele afirma, porém, que será necessário avaliar se a entidade terá verbas suficientes para tal. A mostra poderá ser visitada até 4 de novembro, de segunda a sexta-feira, das 8 às 18 horas, com entrada gratuita. No feriado de 2 de novembro não haverá visitação.
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