Seis meses após as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em maio de 2024, o descaso e a morosidade dos órgãos públicos ainda são evidentes nas cidades do Vale do Taquari. Historicamente vulnerável, a região foi palco de mais uma tragédia anunciada, com centenas de famílias ainda desassistidas e sem acesso à moradia digna ou políticas públicas que previnam os recorrentes desastres climáticos.

Uma inspeção realizada por representantes do CDES – Direitos Humanos, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e da Sociedade Sueca para a Proteção da Natureza, no dia 15 de novembro, revelou o cenário alarmante de abandono nas cidades de Estrela e Lajeado. 

Em Estrela, a moradora Marilsa Schneider, “Mari”, viu seus pais perderem tudo pela força das águas que destruiu todas as casas do bairro Marmitt. Ela conta que teve que recorrer à Justiça para garantir o benefício do aluguel social para os pais, enquanto a promessa de novas moradias segue sem se concretizar. Essa situação é reflexo de um problema generalizado, muitas famílias enfrentam não só a perda de suas casas, mas também a especulação imobiliária com o aumento abusivo dos aluguéis. “Casas que eram de R$ 600 a R$ 700 hoje estão cobrando até R$ 1.500 e o aluguel social mal cobre as despesas. Hoje meus pais doentes moram num porão por R$ 900. Está difícil, estamos perdendo as esperanças”, desabafou Mari. 

Já em Cruzeiro do Sul, o bairro Passo de Estrela foi totalmente destruído, tornou-se símbolo do abandono do poder público. No local, existia uma igreja onde o MAB organizava a distribuição de alimentos, onde após a enchente de maio sobraram apenas os escombros. Na busca por soluções para garantir uma moradia digna às vítimas das enchentes, os moradores organizados no MAB fazem mutirões para cadastrar famílias no programa Minha Casa Minha Vida – Entidades, assim planejam a construção de novas casas enquanto ações públicas se resumem a cadastramentos básicos e distribuição limitada de cestas básicas. “Precisamos de políticas públicas que saiam do papel e atendam as reais necessidades das comunidades”, afirmou Alexania Rossato, da coordenação do MAB. 

“O descaso ainda é imenso e a população atingida não teve acesso a políticas públicas efetivas de moradia, como compra assistida ou programas estaduais de moradia e mitigação do desastre climático”, destacou Cristiano Muller, integrante do CDES – Direitos Humanos, após a visita nas comunidades devastadas pela enchente. 

Organizações sociais preenchem lacuna deixada pelo poder público

Desde setembro de 2023, quando enchentes anteriores já haviam causado destruição, o Vale do Taquari convive com o medo constante de novos desastres. A falta de infraestrutura adequada, os sistemas de contenção obsoletos e a ausência de planejamento preventivo agravam a vulnerabilidade da região. Mesmo com a criação de programas habitacionais e assistenciais, grande parte das promessas segue sem execução.

A visita das organizações reforçou a necessidade urgente de ações concretas e integradas por parte dos governos. A ausência de moradias definitivas, a precariedade do aluguel social e o impacto psicológico sobre as famílias atingidas expõem a negligência. Enquanto isso, movimentos sociais e organizações internacionais continuam mobilizados, preenchendo as lacunas deixadas pelo Estado. “Estamos contando com a ajuda do MAB e a solidariedade que vem de fora”, ressaltou a moradora Mari, ao apresentar o que restou da casa dos pais no bairro Marmitt, em Estrela.

Relatório destaca falhas estruturais e recomendações urgentes

Durante a visita, foi apresentado o Relatório executivo das violações dos direitos humanos no contexto da crise climática, elaborado por diversas organizações, como CDES – Direitos Humanos, Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens (MAB) e Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLN). A visita às cidades atingidas pelas enchentes e a entrega do relatório às comunidades contou com o apoio político e institucional da Fundação Rosa Luxemburgo.


O documento denuncia o descaso e a lentidão do Estado brasileiro e de seus gestores em “enfrentar as graves consequências das mudanças climáticas”. Segundo o relatório executivo, normas estaduais e municipais flexibilizam a proteção ambiental, permitindo empreendimentos em áreas vulneráveis e agravando os impactos dos desastres.

O relatório apresenta 39 recomendações destinadas aos governos federal, estadual e municipais, além da comunidade internacional e da ONU. Entre as áreas abordadas estão:

  • Abrigamento e benefícios sociais: garantia de moradia digna e apoio financeiro adequado.
  • Acesso aos serviços públicos: água potável, saneamento e infraestrutura básica.
  • Informação e participação: inclusão das comunidades nos processos decisórios.
  • Moradia e reassentamento: programas que evitem a desterritorialização e priorizem os mais vulneráveis.
  • Prevenção de riscos: reconstrução de diques, sistemas de alerta e planos efetivos de proteção civil.
  • Assistência jurídica: suporte jurídico para reparação de danos e perdas.
  • Proteção ao meio ambiente: revisão das legislações que contribuem para o agravamento das mudanças climáticas.

O documento destaca que ações integradas e sustentáveis são essenciais para evitar que tragédias como essa continuem a se repetir. Para acessar o relatório clique aqui.

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