Sem política habitacional, cresce a luta por moradia. Multiplicaram-se ocupações na Região Metropolitana de Porto Alegre. Só capital, faltam 75 mil residências para cerca de 400 mil pessoas
Por Flávio Ilha
Unidade habitacional da Ocupação Lanceiros Negros, localizada no Centro de Porto Alegre, no prédio onde funcionava o Ministério Público, pertencente ao Estado
Foto: igor Sperotto
A manicure Verenice dos Santos chegou a Porto Alegre em março de 1990. Tinha 12 anos e nunca vira televisão na vida. Fugiam, ela e a família, de uma realidade que jamais os abandonaria a partir de então: a concentração da terra.
“Meus pais deixaram a roça em Porto Xavier (norte do Rio Grande do Sul) quando eu tinha seis anos. Foram para a cidade, meu pai trabalhar como pedreiro e minha mãe cuidar dos filhos. Seis anos depois, viemos para a capital atrás de uma vida melhor. Mas continuou tudo igual. Nunca tivemos um título de posse, seja de uma casa ou de um pedaço de terra”, relata.
Verenice é uma das 1,5 mil pessoas que ocuparam, há três anos e meio, uma extensa área de terra sem aproveitamento social às margens da avenida Sertório – uma das mais movimentadas de Porto Alegre. A Ocupação Sete de Setembro, em alusão à data em que as primeiras 80 famílias chegaram ao local, é uma das maiores da região metropolitana: reúne 300 famílias, das quais 40 reivindicam a posse da terra na condição de quilombolas.
Nos últimos cinco anos, uma leva de novas ocupações tomou conta da Grande Porto Alegre. Somente áreas com mandado de reintegração de posse a ser cumprido são 62, de acordo com dados fornecidos pela Defensoria Pública do Estado com base nas petições à Brigada Militar. Em situação de conflito entre ocupantes e proprietários, devem ser pelo menos o dobro.l
Segundo o Departamento Municipal de Habitação (Demhab), há pelo menos 750 ocupações irregulares apenas em Porto Alegre. Mas os dados são de 2009. Desde lá, o cadastro não foi atualizado – o que permite supor que o problema se agravou, já que a construção de novas unidades habitacionais não chegou a 3 mil na capital desde 2010.
O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), por sua vez, calcula que haja pelo menos 400 ocupações apenas na região metropolitana de Porto Alegre – cerca de 10% delas em áreas públicas. Os números são imprecisos. O grupo quer justamente criar um Observatório das Ocupações no Estado para saber a dimensão do problema.
Verenice dos Santos, manicure
Não informado
Verenice chegou ao assentamento em fevereiro de 2013. Não podia mais pagar o aluguel de R$ 500,00 pelo barraco de duas peças onde morava com o filho – na mesma área irregular, a Vila Respeito, onde a família foi morar quando chegou a Porto Alegre. Ocupada há mais de quatro décadas, a vila nunca foi regularizada, embora os moradores paguem contas de água e luz.
Problema tende a aumentar
“Se vai aumentar? Com certeza. 2016 vai ser um ano muito tenso do ponto de vista da pressão dos movimentos sociais pelo direito à moradia. A estratégia é continuar tensionando, até porque o conflito é a única forma da desigualdade aparecer”, sustenta a urbanista Karla Moroso, do Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES).
A ONG, que trabalha com direitos humanos relacionados a questões urbanas, assessora juridicamente movimentos sociais que lutam pela moradia – entre eles a ocupação 20 de Novembro. Karla, que foi escolhida arquiteta do ano (2015) no Rio Grande do Sul pelo seu trabalho junto às ocupações do morro Santa Tereza, em Porto Alegre, critica as políticas habitacionais oficiais e a inércia do Estado, que não ataca a fonte das desigualdades.
Ocupação Sete de Setembro é uma das maiores da região metropolitana e reune 300 famílias
Foto: Igor Sperotto
“A solução para o problema fundiário é intervir no preço da terra e na distribuição da riqueza urbana. Enquanto isso não ocorrer, as populações pobres tenderão sempre a ser deslocadas para áreas periféricas, longe da infraestrutura. Os programas públicos de moradia deveriam disputar espaço com as áreas valorizadas da cidade”, defende a urbanista.
A crítica é uma referência direta ao programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Centrado na produção massiva de unidades habitacionais em extensas áreas periféricas, o programa não ataca a concentração do solo e nem a ação dos especuladores imobiliários. Antes de apostar nesse modelo industrial, segundo Karla, os gestores públicos deveriam se preocupar em aplicar o Estatuto da Cidade. “Mas falta vontade política”, lamenta.
Karla Moroso, do CDES
Foto: Igor Sperotto
A Lei 10.257, que ficou conhecida como Estatuto da Cidade, prevê a remoção de todos os obstáculos que impedem a utilização da propriedade urbana em prol do bem coletivo – entre eles a famigerada “retenção especulativa dos imóveis urbanos”. Para isso, autoriza a elaboração de leis municipais que determinem o parcelamento, a edificação ou até mesmo a utilização compulsória de solos urbanos não construídos ou subutilizados.
Entre os instrumentos de persuasão contra especuladores está adoção do IPTU progressivo, além da desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, entre outros mecanismos. Mas as municipalidades pouco têm se ocupado em regulamentar a lei, que é de 2001.
Novos conflitos se multiplicam
Enquanto isso não ocorre, os conflitos se multiplicam. Na ocupação Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre, 75 adultos jovens, entre os quais duas grávidas, cinco idosos, seis bebês, 30 crianças até 12 anos e 14 adolescentes fizeram dos três andares de um prédio histórico abandonado há mais de dez anos seu local de resistência. O prédio, que já abrigou salas do Ministério Público estadual e também a Fundação Bienal do Mercosul, foi transformado em condomínio.
Organizados, os ocupantes dividiram os andares em “apartamentos” e estabeleceram diretrizes para evitar que o movimento seja criminalizado. “Aqui não entra droga nem álcool. Se alguém quer beber, que vá beber bem longe daqui. E que só volte quando passar”, explica, bem-humorada, Jussara Vaz dos Santos, uma das líderes da ocupação.
Crianças da ocupação Lanceiros Negros organizam seus espaços
Foto: Igor Sperotto
Famílias com crianças ocuparam os dois primeiros andares – o último foi destinado a casais sem filhos e solteiros. O prédio tem 11 banheiros, dos quais sete com chuveiro. Também ganhou biblioteca, creche, área de lazer. O controle de entrada e saída é rigoroso. Depois das 23 horas o acesso é proibido mesmo para os moradores, a maioria oriunda de áreas conflagradas pelo tráfico.
Há quatro refeições diárias garantidas por doações e elaboradas pelas três cozinheiras do grupo. Os ocupantes se reúnem todas as segundas-feiras e se consideram em assembleia permanente para evitar a possibilidade de um despejo forçado – que já foi determinado pela Justiça, mas está suspenso.
“Nos primeiros dias (a ocupação ocorreu em 14 de novembro de 2015) a pressão foi muito grande. As viaturas da Brigada Militar desciam a rua em alta velocidade, com as sirenes ligadas. Jogavam luz aqui para dentro, como forma de nos intimidar. Mas não conseguiram”, comemora Jussara.
O grupo tem uma diretoria com sete pessoas, que toma as decisões executivas. Deliberações estratégicas, só nas assembleias das segundas-feiras. A ocupação foi a primeira ação no Rio Grande do Sul do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que é filiado à Central dos Movimentos Populares.
Na ocupação 20 de Novembro, nem mesmo o reconhecimento de que a área é de fato uma remanescente de quilombo – certificado concedido pela Fundação Palmares – é garantia de permanência. Trata-se do sexto quilombo reconhecido oficialmente pela União no Rio Grande do Sul.
“Querem nos tirar daqui porque a área se valorizou muito. Os grandes edifícios estão chegando cada vez mais perto. Mas nós não vamos sair. Não queremos poder, só um lugar para morar. Se precisar, vamos de facão pra cima deles”, diz o presidente do Quilombo dos Machado, Luis Rogério Machado Camilo.
A área, reivindicada por uma incorporadora de Porto Alegre, não está na lista de regularizações da Secretaria Estadual de Obras, Saneamento e Habitação. Apesar da gravidade do problema, apenas 15 ocupações passam atualmente por um processo de legalização – e a maioria com uma solução ainda distante de ser encontrada (veja lista completa no final da reportagem).
Em nota, a secretaria reconhece “a complexidade” do processo de regularização, “que inclui medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais”, e reclama da falta de apoio dos municípios.
De volta ao Estatuto
É do Estatuto da Cidade também a inclusão das áreas (ou zonas) especiais de interesse social, que abrem caminho à regularização fundiária de regiões já habitadas, nos instrumentos de política urbana. Em Porto Alegre, existem mais de 100 AEIS gravadas há pelo menos 20 anos – sem que nenhuma tenha sido regularizada.
Luiz Rogério Machado Camilo, presidente do Quilombo dos Machado
Foto: Igor Sperotto
Os últimos dados disponíveis sobre Porto Alegre, de 2009, indicavam umdéficit habitacional de 53 mil unidades – traduzindo para famílias, chega-se à cifra média de 280 mil pessoas. Mas isso há seis, sete anos. Hoje, a previsão de déficit chega a 75 mil casas ou cerca de 400 mil habitantes, de acordo com a CDES. Praticamente um terço da população da cidade.
A defensora pública Adriana Scheffer, do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia (Nudeam) da Defensoria Pública do Estado e da Comissão Nacional de Moradia do órgão, reconhece que a distância entre o “papel e a realidade” ainda é muito grande. E que o poder judiciário tem um peso fundamental nesse conflito.
“Nossos juízes e promotores ainda são formados sob a influência de uma visão patrimonialista e de defesa da propriedade, coisa que a Constituição de 1988 aboliu no que tange ao direito à moradia. Infelizmente, poucos magistrados conseguem fazer uma leitura humanizada do problema fundiário”, lamenta.
Adriana liderou um projeto-piloto entre junho e dezembro de 2015 em que 16 processos conflituosos de Porto Alegre envolvendo questões fundiárias foram mediados por representantes da Defensoria Pública, do Ministério Público e da Justiça. Desses, metade chegou a um acordo negociado – seja para desocupação voluntária ou concessão de prazo para que as famílias deixassem a área ocupada.
É pouco considerando o universo de mais de 100 ocupações que estão judicializadas na região metropolitana, mas muito se for levado em conta o índice de reintegrações de posse imediatas concedidas pela Justiça. Segundo levantamento do advogado Jacques Alfonsín, que defende ocupações na região metropolitana, apenas três de cada 100 decisões judiciais são favoráveis aos movimentos sociais.
O advogado diz que os juízes sequer investigam o uso social da propriedade contestada antes de proferir sua decisão. “Não se ocupa prédio ou latifúndio por recreio, isso é óbvio. Trata-se da força normativa das necessidades. Mas existe uma parede ideológica que não permite ao Judiciário enxergar nossos problemas sociais”, critica. Em mais de 30 anos de advocacia, Alfonsín conseguiu levar um magistrado ao local do conflito fundiário apenas três vezes. E, em todas, houve decisão favorável aos movimentos sociais.
No Estado, uma Comissão foi criada em agosto de 2014 para mediar conflitos fundiários urbanos. Formada por representantes da Secretaria de Habitação e Saneamento (que virou Secretaria de Obras, Saneamento e Habitação no atual governo), Casa Civil, Procuradoria do Estado e Secretaria de Segurança Pública, além de membros do Conselho das Cidades, o órgão foi implementado mais de um ano depois do decreto de criação. E teve as primeiras reuniões apenas em dezembro de 2015.
Na prática, o grupo colheu poucos resultados. Alguns positivos, como no caso das comunidades 1º de Maio e 20 de Novembro, na bairro Rubem Berta, e Areia, no Humaitá. Mas não conseguiu evitar o despejo das 300 famílias da ocupação Morada dos Ventos, no bairro Hípica. A ação, concretizada na manhã de 4 de dezembro do ano passado, expôs toda a truculência da Brigada Militar.
“A estratégia é bem clara: a Brigada infiltra provocadores na ocupação, os líderes vão protestar junto ao comando e é dada voz de prisão por desacato. Com as famílias acuadas e sem liderança, a ocupação é rápida e eficiente”, diz um dos coordenadores do MNLM no Rio Grande do Sul, Ezequiel Morais.
Integrante da comissão de mediação do governo indicado pelo Conselho das Cidades, Morais conta que o grupo também não evitou o despejo da comunidade Fazendinha Bela Vista, concretizado menos de duas semanas após a reintegração de posse na Morada dos Ventos. Morais tem discutido a permanência ou não do MNLM no grupo com outros integrantes dos movimentos sociais. “Se estamos aqui apenas para legitimar a política de despejos desse governo, não nos interessa”, diz.
Biblioteca da Ocupação Sete de Setembro, em Porto Alegre
Foto: Igor Sperotto